Por Maurício Rands*
Ultimamente, quando vou à praça da Jaqueira para minha corridinha, tenho encontrado um homem revirando o lixo. O mesmo. Em frente ao elegante British Country Club. Não busca latas para revender. Caça restos de comida. Para matar a fome. Mais um homem caranguejo, como denunciaram Josué de Castro e Chico Science. E Manuel Bandeira, em “o Bicho”, (O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem.) Mais um “homem-gabiru”, por quem se solidarizou Xico Sá.
O Observatório Brasileiro de Políticas Públicas da UFMG aponta 213,3 mil pessoas em situação de rua no país. Apenas na cidade de São Paulo, são 42.240 pessoas. Mas eles são mais. Pelo menos 35% não estão no CadÚnico do Governo Federal e, portanto, não recebem auxílio público estatal. 68% são negros (pretos e pardos); 87% são do sexo masculino; 87% estão na faixa etária de 18 a 59 anos; 3% são crianças e adolescentes (0 a 17 anos); e 10% são idosos.
Essa tragédia tem efeito devastador. Primeiro, para os próprios. Abandonados. Deixados de fora. Sem autoestima. Consumidos em sentimentos de fracasso, revolta e resignação. Depois, para a nação. É fracassada uma nação que não consegue superar o mínimo civilizatório. Mesmo que ganhe o hexa no Catar. Mesmo tendo derrotado a extrema-direita por um fiapo de diferença. Mesmo que dê passos concretos para voltar a proteger a Amazônia, diminuir as emissões e chegar ao desmatamento zero.
Josué de Castro foi um pernambucano cidadão do mundo. Autor de clássicos universais, como “A Geografia da Fome” (1946) e “Geopolítica da Fome” (1951). Conquistou um lugar entre as maiores personalidades mundiais de seu tempo. Foi deputado federal, embaixador do Brasil na ONU, presidente da FAO e fundou a Associação Mundial de Luta Contra Fome – ASCOFAM. Foi indicado três vezes para o prêmio Nobel (1954, 1963 e 1970). Em 1964 foi cassado e exilado pela ditadura militar. Seu crime: mostrar ao mundo que a erradicação da fome era um objetivo atingível. Que diria ele se, naquela 2ª metade do século passado, alguém lhe sussurrasse que, em 2022, as ruas do seu amado Recife, do Rio de Janeiro e de São Paulo ainda seriam palco desse triste desfile de deserdados? Seres humanos vagando em nossas ruas com fome, sem casa, sem cidadania, sem afeto, sem esperanças.
Já existem iniciativas de combate ao problema. Dos governos e da sociedade civil. Todas meritórias. Mas a resiliência da calamidade reclama soluções mais focadas e decisivas. O presidente eleito tem planos para requalificar as políticas sociais. Que vão além do Bolsa-família. Que passam por complementos e condicionalidades. Pela busca da reinserção produtiva dos assistidos. E pela satisfação de suas necessidades de saúde e educação.
Mas para enfrentar com foco e erradicar o drama da nossa população de rua, o novo governo federal poderia criar um programa específico. Com foco e a meta de, em seis meses, retirar e apoiar toda a população das ruas das cidades brasileiras. Primeiro, um diagnóstico sobre as razões pelas quais esses brasileiros não são alcançados por benefícios como bolsa-família e BPC. Que se busquem algumas respostas. Por que se desconectam dos parentes? Por que não aceitam, quando é o caso, residir nos estabelecimentos de acolhimento já existentes? Depois, esse novo programa criaria os mecanismos de solução. Uma campanha que mobilizasse um órgão específico do governo federal, atuando em conjunto com outro órgão específico dos estados e municípios. Além dos recursos dos orçamentos públicos, poderia ser feito um desafio à iniciativa privada, inclusive com incentivos fiscais transitórios, para aportes de recursos privados. Que fossem gestados grupos de busca ativa em cada município. Um modelo de campanha. De mutirão temporário e focado. Como já se fez no passado para erradicar a malária. Tudo com tempo certo para acabar e resolver o problema. Poderia ser viabilizado algum cupom ou cartão para que os moradores de rua tivessem recursos e opções. A de se reconectar com os parentes, agora com um recurso específico para contribuir com as despesas do lar estendido. Ou a de habitar em casas de acolhimento que fossem montadas com esse propósito específico, a partir de um padrão de qualidade, conforto e funcionalidade. Os que estivessem em condições, poderiam aderir a um programa de alfabetização ou de aprendizado de técnica ou profissão. Difícil e complexo? Óbvio. Mas uma nação que não resolve um problema desses vai sempre dar espaço à violência e à desesperança. E vai se consumir na busca de culpados para esse fracasso nacional que é a persistência de uma vasta população de rua vivendo à margem de qualquer noção de cidadania.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford