Por Milton Coelho*
Em “Os Invisíveis”, livro publicado em 2021, a jornalista Fernanda da Escóssia acompanha a saga de pessoas que tardiamente procuram tirar seu primeiro documento de identificação civil. Jogadas de um balcão a outro das repartições públicas, elas, em maioria com baixíssima escolaridade e acesso à informação, precisam muitas vezes contar com algum “tutor social” – alguém que as auxilie a se mover pela burocracia em busca da chance de, finalmente, existir para o Estado. Embora a incorporação de novas tecnologias para o acesso digital às políticas públicas tenha o potencial de ampliar a autonomia do cidadão em suas solicitações ao Estado, temos assistido também à ampliação da necessidade de um outro tipo de tutor – “o tutor digital”. E isso acontece pelo modo como a digitalização do acesso a serviços e benefícios públicos tem se estruturado, seja naquilo que esconde, seja no que revela.
A existência de “tutores digitais” não é algo negativo por si. Não há nada de errado em pessoas digitalmente incluídas auxiliarem a população mais vulnerável no acesso a seus direitos. O erro está em que os tutores digitais sejam absolutamente necessários para isso: sem o tutor, a pessoa vulnerável simplesmente não consegue dar entrada em requerimentos digitais para benefícios e serviços públicos. Neste caso, o tutor é um ente privado suprindo a omissão estatal.
Tomemos como exemplo o caso da digitalização de acesso aos benefícios do INSS. Quando foi lançado, em 2017, o INSS digital nos prometeu maior agilidade e qualidade no atendimento do cidadão. E, cinco anos depois, temos mais de 2,85 milhões de pessoas na fila virtual por benefícios previdenciários ou assistenciais, como nos indica matéria publicada no jornal O Globo. Essa fila decorre do que esse processo digital esconde: a escassez de profissionais no INSS, principalmente de peritos. E também do que revela: o hermético modelo de acesso digital com o qual as pessoas comuns precisam lidar ao solicitar um benefício.
Peço ao leitor que faça o exercício de acessar o portal Meu INSS, como quem tivesse baixa escolaridade e pouco manejo de aplicativos digitais. Explore as abas atentamente e logo verá que tudo aquilo está num vocabulário e num formato ininteligíveis para grande parte de nossa população. Pois ali, na fila virtual, estão milhares de pessoas cujos processos não andam por pendência em alguma documentação. Muitas delas não conseguem entender sequer qual documento está faltando e precisam contar com o apoio de terceiros para sanar dificuldades criadas pelo próprio Estado. Alguns felizmente poderão contar com uma mão amiga que acesse o aplicativo, entenda e encaminhe as pendências. A outros só restará contratar tutores remunerados, reforçando o grande mercado de judicialização envolvido na concessão de benefícios do INSS.
A digitalização do acesso a políticas públicas veio, sem dúvida, para ficar. E é ferramenta potencialmente muito positiva para o Estado e para as pessoas, porque pode gerar economia de tempo e dinheiro – duas coisas muito escassas entre os mais pobres, inclusive. Mas deve ser estruturada considerando as características e necessidades de nossa sociedade. No Brasil, cerca de 40% das pessoas de 25 anos ou mais não completaram o ensino fundamental (IBGE) e, embora o acesso e o uso da internet tenham crescido expressivamente ao longo dos últimos anos, ainda é insuficiente nas áreas rurais, entre os mais pobres e menos escolarizados.
Isso indica que, para ser conduzida de forma includente, a digitalização da demanda por benefícios e serviços públicos não pode simplesmente substituir os meios tradicionais de acesso de uma hora para outra, mas sim estruturar-se de forma complementar a eles. Ainda, precisa ser desenhada de maneira compreensível, em forma e conteúdo, e articulada a estratégias de inclusão digital. Sem isso, tenderá simplesmente a reproduzir, sob o verniz da modernização, as históricas desigualdades sociais que marcam nosso país.
*Deputado federal (PSB-PE), é advogado e auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco