Por Maurício Rands*
Os tempos são de muita irracionalidade. Coletiva e individual. A irracionalidade da guerra da Ucrânia, onde mesmo quem conquista o território de outro país soberano, ao final, perde. A intensa produção de fake news e mensagens de ódio. Quem nunca ficou surpreso ao ver pessoas inteligentes acreditando numa dessas aberrações disseminadas pelos gabinetes do ódio de guerrilheiros digitais manipulando o seu gado? A ponto de levar muitas delas tomarem decisões que lhes prejudicam. Como a de não tomar vacina em plena pandemia que matou milhões. Ou a de seguir recomendações absurdas feitas em nome da ciência. Aliás, na pandemia, a ciência nunca foi tão invocada. Mesmo por gente que talvez não saiba o que ela é. A pobrezinha teve seu santo nome usado para justificar as maiores asneiras…
Preocupado com esse panorama sombrio, Steven Pinker, professor de psicologia cognitiva da Universidade Harvard, acaba de nos brindar com um portentoso estudo sobre a racionalidade (Rationality: what it is, why it seems scarce, why it matters). Suas reflexões decorrem de um paradoxo hoje acentuado em tempos de polarização nas redes. A humanidade consegue ser ao mesmo tempo racional e irracional. Essa dualidade decorre de uma outra dualidade: o eu e o outro. Para ele, a razão humana, utilizando ferramentas como lógica, correlação, causalidade, probabilidade e pensamento crítico, permite-nos atingir objetivos. O problema é que individualmente podemos fazer escolhas racionais; mas, no agregado coletivo, nada garante que essa miríade de escolhas individuais vai produzir um resultado racional. O raciocino interessado individual gera a conduta oportunista (free ride) em relação ao entendimento coletivo. Produz a chamada “Tragédia da Racionalidade dos Comuns”. Como ele diz: “cada um de nós tem um motivo para preferir a ‘nossa’ verdade; mas, juntos, todos estaríamos melhor com ‘a’ verdade”. Pelo motivo de que a realidade é guiada pela lógica e por leis físicas. E elas acabam por prevalecer sobre os falsos mitos, a magia e o diabólico.
Pinker faz um exercício para entender o paradoxo de um ser racional inclinar-se tão frequentemente para as crenças irracionais. Ele identifica em todos os humanos a coexistência de uma mentalidade mitológica e uma mentalidade realista. As pessoas tenderiam a dividir o mundo em duas zonas. Uma formada pelos objetos físicos ao seu redor, as pessoas com quem interagem, e as regras que regulam suas vidas. Nessa área, prevaleceriam os juízos acurados sobre o que é falso ou verdadeiro. Baseados na crença racional de que existe um mundo real. Porque as consequências de desconsiderar essa realidade são potencialmente danosas. Essa seria a “mentalidade” racional. Uma outra zona é formada pelo mundo além da experiência imediata. O passado remoto. O futuro incerto. Os lugares e pessoas distantes. Os meandres do poder e da burocracia. O microscópico, o cósmico e o metafísico. As crenças nessa zona constituiriam “narrativas” cuja função seria forjar uma “realidade social” para coesionar as tribos e seitas. E para lhes dotar de um propósito moral. Essa seria a mentalidade mitológica. Por conta dessa dualidade de mentalidades, compromete-se a ambição do Iluminismo por um realismo universal.
Para enfrentar o problema, Pinker sonha com uma “comunidade racional”. Que poderia funcionar com a prática de certas normas. Que, aliás, encontram-se em algumas instituições relativamente bem-sucedidas em termos de racionalidade. Elas baseiam-se em canais de agregação que fazem com que o coletivo seja mais “inteligente” do que as suas partes. Como exemplificam a prática do peer review na academia, a testagem na ciência, o fact-checking no jornalismo, os freios e contrapesos nos regimes políticos, e o contraditório nos sistemas judiciários. Uma “comunidade racional”, ele augura, poderia emergir da mudança de atitudes de cada um de nós. Se reconhecêssemos incertezas em nossas crenças. Se questionássemos os dogmas das nossas “seitas” políticas e bolhas. Se mudássemos nossos juízos quando os fatos mudassem, como recomendava Keynes. Se abandonássemos a atitude de guerrilheiros dos dogmas das nossas claques.
A racionalidade guia-se por lógica e evidências, avaliação de custos e benefícios, causas e efeitos. Busca equilibrar a vantagem individual e o bem comum. Isso nos permite superar armadilhas como as falsas dicotomias, as falácias, as explicações de uma única causa, a crença em teorias conspiratórias e outras ilusões cognitivas. Pinker chega a propor que, ao lado da matemática e da língua, os currículos básicos incluam o ensino das ferramentas da racionalidade. Para estimular a educação científica. Isso nos ajudaria a separar o que é fato do que é ficção. Mais abertos e reflexivos, poderíamos almejar a prevalência da mentalidade realista sobre a mentalidade mitológica. A consequência, uma humanidade com mais bem-estar e segurança. E com mais progresso material e moral.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford