Invasão da Ucrânia

Opinião
Publicado por Karol Matos
24 de fevereiro de 2022 às 14h00min
Foto: Daniel Leal/AFP

Por Gustavo Rocha*

Para começar este texto, é preciso estabelecer um pacto entre o autor e os leitores. O pacto é de que não haverá bom e mau, lado certo e lado errado nessa história. Aquilo que em linguagem acadêmica chamamos de “maniqueísmo”. Trataremos aqui de geopolítica, com boas pitadas de história e de imaginário cultural. Trata-se de um assunto bastante controverso e cheio de interesses envolvidos. Peço, antecipadamente, perdão por possíveis repetições de palavras semelhantes (russo, Rússia, etnicamente russos, rs).

Vamos aos fatos sobre a Ucrânia. É o maior país localizado unicamente na Europa. Se contarmos a Rússia, mesmo que apenas sua porção europeia, a Ucrânia seria o segundo maior país do continente em território. Está localizada no Leste Europeu, e até o fim da União Soviética era o segundo maior país do bloco. Também era na Ucrânia que estava uma boa parte da capacidade nuclear soviética, tanto para geração de energia (inclusive, Chernobyl fica lá, ao norte de Kiev) quanto em relação ao arsenal nuclear. Isso devido ao fato de que a Ucrânia possui uma das maiores reservas de Urânio recuperável do mundo, a maior da Europa. Além disso, a Ucrânia possui ricas reservas minerais, ainda pouco exploradas para padrões europeus, e é uma potência agrícola no continente.

Historicamente, Rússia e Ucrânia são bastante ligados. Kiev já chegou a ser a capital do Império Russo. As origens da mãe Rús (como os russos se referem à sua nacionalidade) estão associadas ao atual território Ucraniano. Os idiomas são bastante próximos, e o Russo é o segundo idioma de boa parte da população (fora que o russo é idioma oficial das regiões ucranianas de maioria étnica russa). A União Soviética foi governada por um cidadão de origem ucraniana, o Nikita Khrushchev (sucessor de Stálin na liderança da URSS, este teria sido o responsável por devolver a Península da Crimeia à Ucrânia, como um presente à sua terra natal, já que a região havia sido anexada pelo Império Russo no século XVIII).

Com o fim da Guerra Fria, a Ucrânia passou a compor vários blocos internacionais articulados pela Rússia para manter sua zona de influência no leste europeu. Esses blocos contemplavam acordos de comércio, acordos de cooperação de diversas áreas, e acordos militares. Essa área de influência foi sendo diminuída e minada ao longo de toda a década de 1990 e início dos anos 2000, uma vez que a Rússia estava bastante enfraquecida e não parecia ter capacidade de reação.

Não é segredo para ninguém, que os Estados Unidos e as potências europeias têm interesse em atrair a Ucrânia para a sua esfera de alianças. E para isso, não se poupam em utilizar mecanismos como inteligência, influência internacional e até mesmo interferência em eventos domésticos do país. Obviamente isso causa uma grande inquietação em Moscou, que tem interesses opostos. A Rússia alega, com certa razão, de que os EUA violam sistematicamente compromissos verbais firmados durante os eventos que levaram ao fim da União Soviética. Porém, como os acordos foram verbais, o Ocidente nega a existência de tais compromissos.

A política ucraniana de hoje reflete essa história. Podemos resumi-la em dois grandes grupos políticos, um pró-Ocidente, e um pró-Rússia. Hoje, quem governa é o grupo pró-Ocidente. Este chegou ao poder após uma série de levantes populares no Oeste do país (que aconteceram entre 2013 e 2014) contra o então governo, que era Pró-Rússia. Há relatos de que a CIA estaria envolvida na articulação desses atos, além de outros fatos controversos como a participação relevante de grupos neonazistas nas manifestações. O atual presidente, eleito em 2018, é um comediante com formação em direito, que se tornou conhecido ironizando a Rússia em um programa de TV. Ele manifestava apoio aos levantes populares, especialmente os que ficaram conhecidos como Euromaiden. Esta mudança de governo levou regiões no leste e sudeste do país a formarem grupos separatistas.

Ainda com esta mudança de governo, a Rússia utilizando a justificativa de proteger uma região de maioria absoluta de russos étnicos, invadiu a Península da Crimeia em 2014.). Cabe ressaltar que assim como as regiões separatistas a leste do país hoje, a Crimeia havia decidido internamente por se separar da Ucrânia, e depois referendou a invasão russa com cerca de 90% de aprovação. Obviamente, a Ucrânia alega que a anexação foi ilegal (o que chega a ser um pleonasmo, nenhuma constituição prevê a ideia de separatismo ou um tratado internacional prevê situações legais para uma invasão ou anexação de território).

Desde então, há uma tensão entre os vizinhos, pois o governo pró-Ocidente sinaliza a intenção de aderir à União Europeia e à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma aliança militar criada pelos EUA após a 2ª Guerra Mundial para frear o avanço da União Soviética, e hoje seu principal instrumento de cooperação militar). A Rússia, repetidas vezes, disse que não aceitaria que a Ucrânia entrasse para nenhum dos dois blocos (embora a entrada da Ucrânia na OTAN seja mais preocupante).

Nesta nova crise da Ucrânia, temos uma série de eventos que parecem um déjà-vu. Dia 22/02/2022 Putin reconheceu a independência de duas regiões separatistas da Ucrânia, Donestk e e Luhansk. Assim como no caso da Crimeia, esses dois movimentos são de grupos etnicamente russos, e aparentemente, receberam apoio russo. Ao reconhecer a independência dessas duas regiões, Putin cria um argumento que dê legitimidade à defesa dessas regiões, e ainda por extensão, dos ucranianos que se identifiquem como etnicamente russos. Então, uma ação militar para “proteger” essas regiões era esperada.

O que ninguém esperava, talvez com exceção do governo dos EUA, era uma invasão completa da Ucrânia como foi iniciada no início de hoje (aqui no Brasil ainda de madrugada). A Rússia, utilizando uma grande parte do seu aparato militar mobilizado ao redor da Ucrânia procedeu uma megaoperação militar de invasão, utilizando mísseis, aviões, tropas em terra, tropas anfíbias e navios. Em termos de tropas empregadas, apenas as duas ofensivas (nos frontes ocidental e oriental) contra os Nazistas pode ser comparada à essa operação militar. Nenhum outro conflito empregou tantos soldados de uma única vez.

Apesar de rechaçada pela comunidade internacional, especialmente no ocidente, a reação a esta invasão russa deve ser limitada. É altamente improvável que os EUA, a OTAN ou qualquer país da Europa se envolva diretamente no conflito. O mesmo pode ser dito da China. O Ocidente pode até enviar armas, equipamentos, munição e dinheiro para a Ucrânia, embora dificilmente seja possível um enfrentamento mais prolongado. Neste ponto, voltamos a um cenário com cara e forma de Guerra Fria (onde apenas um dos dois lados se envolvia diretamente e o outro apenas agia de forma indireta dando apoio a grupos ou forças locais).

A reação efetiva do Ocidente deve ficar no campo das sanções internacionais. E neste sentido, já havia uma articulação feita por Estados Unidos, Alemanha e França. O que se espera é que ativos e movimentações financeiras russas sejam completamente bloqueados, inclusive de indivíduos russos. Fala-se em atingir com maior rigor o círculo íntimo do presidente russo (assessores, empresários ligados ao presidente e a sua família). Porém os resultados dessas sanções são bastante incertos. A Rússia vinha se preparando do ponto de vista fiscal (inclusive reduzindo gastos) para eventualmente sofrer sanções econômicas internacionais. Além disso, há um aparato de acordos entre Rússia e China para evitar os impactos de sanções internacionais sobre a economia do país. E neste sentido, é altamente improvável que as sanções venham a se extender à China, ou que a China venha a aderir à estas sanções.

Porém, do ponto de vista das reais intenções da Rússia, não se pode definir neste momento o que acontecerá com a Ucrânia. Apesar de improvável, podemos falar em anexação do país. Menos improvável, é que pode haver o estabelecimento de um “governo de transição” controlado por Moscou, e posterior manipulação da relação de forças políticas do país. Ou ainda, a fragmentação do território Ucraniano em vários países menores e mais fáceis de controlar. Certamente, os países do ocidente tentarão convocar uma conferência internacional, nos moldes do que aconteceu após a invasão da Crimeia, e tentar reestabelecer a independência e unidade da Ucrânia, aceitando algumas vitórias Russas. Ainda precisaremos acompanhar os eventos para saber!

*Gustavo de Andrade Rocha
Internacionalista, doutor em Ciência Política e professor do curso de Relações Internacionais da Asces-Unita

Karol Matos

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