Por Maurício Rands*
A incompetência da América Latina ainda não permitiu que os seus povos vivam dignamente. Por isso, nossos países e seus milhões de deserdados estão sempre à espera de salvadores. Nas duas primeiras décadas desse século, vivemos ondas vermelhas ou cor-de-rosa que não eliminaram os problemas de fundo que reproduzem a desigualdade e a pobreza. Nem conseguiram colocar a América Latina no rol dos países desenvolvidos. A despeito de alguns avanços, a tarefa ficou incompleta. Daí o campo ficou fértil para o aguçamento das polarizações
de sociedades divididas pelas emoções, pelos algoritmos das redes sociais e pelos ressentimentos dos que se viram traídos pelas promessas de inclusão. A essa primeira onda seguiu-se uma outra de direita. Líderes como Piñera, no Chile, Bolsonaro, no Brasil, e Macri, na Argentina, fracassaram. Agora, o continente começa a eleger forças políticas em quem identifica maior compromisso com a erradicação da pobreza e com a redução das desigualdades. É nesse novo ciclo que se enquadram as recentes vitórias de Pedro Castillo, no Perú, Alberto Fernández, na Argentina, Luis Arce, na Bolívia, Lopez Obrador, no México, e Xiomara Castro, em Honduras. E de Gabriel Boric, no Chile.
Essa última vitória tem componentes específicos, em um país que vinha tendo crescimento econômico, mas sob um modelo reprodutor de exclusões e desigualdades. A vitória da Frente Ampla “Apruebo Dignidad” foi tão avassaladora como a das forças democráticas que deram o “No” a Pinochet no plebiscito de 1988. Os mesmos 55% do eleitorado. Agora, foi liderada não pela “Concertación” entre o Partido Socialista e o Democrata Cristão. Mas por uma frente de uma esquerda renovada. Que põe acento na redução das desigualdades, mas também na responsabilidade fiscal. Que valoriza uma economia verde cujo crescimento respeite o meio-ambiente. E que acena com a construção de pontes até mesmo ao candidato derrotado visando à pacificação do país.
Gabriel Boric vem das mobilizações de 2011 e 2019 contra uma previdência que deixou os idosos na pobreza e por acesso à universidade e a melhores serviços públicos. Chega ao governo com um programa que promete melhoria dos serviços públicos de saúde, previdência e educação. Mas com equilíbrio fiscal para não gerar inflação. Que, bem o sabe, invariavelmente penaliza os mais pobres e desestimula os investimentos. A consciência da responsabilidade fiscal hoje no Chile é um valor amplamente partilhado por correntes ideológicas as mais diversas. Boric comprometeu-se, também, a respeitar a Assembleia Constituinte eleita em 2021, cuja composição contempla as novas forças políticas dos jovens, das mulheres e dos povos originários. Especialmente os Mapuches que foram violentamente dizimados pelo colonizador espanhol, embora tenham oferecido uma resistência poucas vezes emulada por outras nações indígenas no continente.
O programa vitorioso com Boric tem uma ousadia poucas vezes vista na esquerda tradicional. Não hesitou em enfrentar temas da guerra cultural da direita que vai sendo derrotada no continente. O apelo do derrotado José Antonio Kast era forte para os conservadores que se incomodam com as causas identitárias e libertárias. Boric ganhou com lemas como os da paridade de gênero, respeito à diversidade e aos direitos humanos. Na questão comportamental comprometeu-se com os direitos reprodutivos das mulheres (sob o lema: “Educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir”) e o direito das pessoas optarem pelo modelo de família que lhes aprouver. Uma ousadia emancipatória que não se vê na esquerda tradicional.
Essa vitória de uma esquerda renovada no Chile demonstra que não basta o crescimento econômico. A desigualdade e a exclusão despertam o sentimento de injustiça que determinou o resultado dessas eleições. A Frente Ampla reuniu as lideranças dos movimentos de rua de 2011 e 2019 e outros setores da esquerda que não se identificaram no 1º turno com o Partido Socialista que esteve por décadas unido à Democracia Cristã na “Concertación”. Mas, no 2º turno, Boric procurou Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Deles teve apoio e reafirmou-lhes ser herdeiro da tradição da centro-esquerda chilena. Tendo inclusive mencionado Allende na sua primeira visita ao Palácio de La Moneda. Agora, resta acompanhar o desafio de compatibilizar políticas sociais e libertárias com o compromisso de responsabilidade fiscal. Esse experimento pode sugerir alguns caminhos a serem perseguidos aqui no Brasil em 2022.
*Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford