A vitória de uma esquerda renovada no Chile

Opinião
Publicado por Américo Rodrigo
27 de dezembro de 2021 às 09h15min
Foto: Brizza Cavalcante

Por Maurício Rands*

​A incompetência da América Latina ainda não permitiu que os seus povos vivam dignamente. Por isso, nossos países e seus milhões de deserdados estão sempre à espera de salvadores. Nas duas primeiras décadas desse século, vivemos ondas vermelhas ou cor-de-rosa que não eliminaram os problemas de fundo que reproduzem a desigualdade e a pobreza. Nem conseguiram colocar a América Latina no rol dos países desenvolvidos. A despeito de alguns avanços, a tarefa ficou incompleta. Daí o campo ficou fértil para o aguçamento das polarizações
de sociedades divididas pelas emoções, pelos algoritmos das redes sociais e pelos ressentimentos dos que se viram traídos pelas promessas de inclusão. A essa primeira onda seguiu-se uma outra de direita. Líderes como Piñera, no Chile, Bolsonaro, no Brasil, e Macri, na Argentina, fracassaram. Agora, o continente começa a eleger forças políticas em quem identifica maior compromisso com a erradicação da pobreza e com a redução das desigualdades. É nesse novo ciclo que se enquadram as recentes vitórias de Pedro Castillo, no Perú, Alberto Fernández, na Argentina, Luis Arce, na Bolívia, Lopez Obrador, no México, e Xiomara Castro, em Honduras. E de Gabriel Boric, no Chile.

​Essa última vitória tem componentes específicos, em um país que vinha tendo crescimento econômico, mas sob um modelo reprodutor de exclusões e desigualdades. A vitória da Frente Ampla “Apruebo Dignidad” foi tão avassaladora como a das forças democráticas que deram o “No” a Pinochet no plebiscito de 1988. Os mesmos 55% do eleitorado. Agora, foi liderada não pela “Concertación” entre o Partido Socialista e o Democrata Cristão. Mas por uma frente de uma esquerda renovada. Que põe acento na redução das desigualdades, mas também na responsabilidade fiscal. Que valoriza uma economia verde cujo crescimento respeite o meio-ambiente. E que acena com a construção de pontes até mesmo ao candidato derrotado visando à pacificação do país.

​Gabriel Boric vem das mobilizações de 2011 e 2019 contra uma previdência que deixou os idosos na pobreza e por acesso à universidade e a melhores serviços públicos. Chega ao governo com um programa que promete melhoria dos serviços públicos de saúde, previdência e educação. Mas com equilíbrio fiscal para não gerar inflação. Que, bem o sabe, invariavelmente penaliza os mais pobres e desestimula os investimentos. A consciência da responsabilidade fiscal hoje no Chile é um valor amplamente partilhado por correntes ideológicas as mais diversas. Boric comprometeu-se, também, a respeitar a Assembleia Constituinte eleita em 2021, cuja composição contempla as novas forças políticas dos jovens, das mulheres e dos povos originários. Especialmente os Mapuches que foram violentamente dizimados pelo colonizador espanhol, embora tenham oferecido uma resistência poucas vezes emulada por outras nações indígenas no continente.

​O programa vitorioso com Boric tem uma ousadia poucas vezes vista na esquerda tradicional. Não hesitou em enfrentar temas da guerra cultural da direita que vai sendo derrotada no continente. O apelo do derrotado José Antonio Kast era forte para os conservadores que se incomodam com as causas identitárias e libertárias. Boric ganhou com lemas como os da paridade de gênero, respeito à diversidade e aos direitos humanos. Na questão comportamental comprometeu-se com os direitos reprodutivos das mulheres (sob o lema: “Educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir”) e o direito das pessoas optarem pelo modelo de família que lhes aprouver. Uma ousadia emancipatória que não se vê na esquerda tradicional.

​Essa vitória de uma esquerda renovada no Chile demonstra que não basta o crescimento econômico. A desigualdade e a exclusão despertam o sentimento de injustiça que determinou o resultado dessas eleições. A Frente Ampla reuniu as lideranças dos movimentos de rua de 2011 e 2019 e outros setores da esquerda que não se identificaram no 1º turno com o Partido Socialista que esteve por décadas unido à Democracia Cristã na “Concertación”. Mas, no 2º turno, Boric procurou Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Deles teve apoio e reafirmou-lhes ser herdeiro da tradição da centro-esquerda chilena. Tendo inclusive mencionado Allende na sua primeira visita ao Palácio de La Moneda. Agora, resta acompanhar o desafio de compatibilizar políticas sociais e libertárias com o compromisso de responsabilidade fiscal. Esse experimento pode sugerir alguns caminhos a serem perseguidos aqui no Brasil em 2022.

​*Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Américo Rodrigo

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